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Cooperativa recicla vida de detentos

É “pela beiradinha” da Via Estrutural que o cadeirante Mauro Campos, de 46 anos, vai para o trabalho. De segund...



É “pela beiradinha” da Via Estrutural que o cadeirante Mauro Campos, de 46 anos, vai para o trabalho. De segunda a sábado, sempre às 6h e às 17h30, os braços de Mauro competem com os motores dos automóveis ao longo de oito quilômetros, até chegar à Associação Sonho de Liberdade. O trajeto, repetido há quatro meses, ainda é comemorado. Afinal, foram vinte e nove anos sem passear livremente pelas ruas: em outubro do ano passado, Mauro passou a cumprir a pena em regime semiaberto.

Já José Divino, 44 anos, nunca foi preso. Por pouco. “Não tem uma farmácia, um comércio na Estrutural que eu nunca roubei”, conta. Na décima vez que foi assaltar o mesmo supermercado, somente com um facão no bolso, foi flagrado pelo dono. “Ele me levou pra casa, me deu um banho e fez a minha barba. Era um homem bom, não tinha o diabo”, defende. Sempre mencionado por Divino, o tal “Coisa Ruim” tem vários significados. Segundo o marceneiro, no dia em que chegou à associação estava com ele no corpo. “Fumei crack e vim pedir emprego. Acho que o Fernando percebeu, mas mesmo assim me aceitou. Esse aí é um homem bom, viu?”
Essas são apenas duas das dezenas de histórias que Fernando Figueiredo, 39 anos, conseguiu dar um novo rumo. Ele é criador do grupo Sonho de Liberdade, projeto que recicla materiais do lixão para confeccionar bolas de futebol e objetos de madeira. Atualmente, Fernando emprega cerca de 60 funcionários, dos quais boa parte já esteve envolvida no mundo do crime ou das drogas. “Não faço uma análise da vida de ninguém. A partir do momento em que chegou aqui, é porque quer mudar, quer uma oportunidade”, explica.

A ideia surgiu dentro da cadeia, onde Fernando passou seis anos e meio. Na Papuda, era quase um microempreendedor. Preparava sanduíches, prensava-os no ferro de passar e vendia quentinhos aos visitantes e a outros presos. Os companheiros de outras celas também conseguiam comprar. Era só amarrar um fio de barbante e passar por entre as grades. Fora da cadeia, nos saidões, tornava-se vendedor ambulante. Batia de porta em porta para mostrar as bolas que costurava durantes as madrugadas. Com os colegas, planejava manter a fábrica quando ganhassem a liberdade.
Na saga de juntar dinheiro para dar à família, Fernando enfrentou o preconceito. “Quando dizia que era presidiário, me respondiam que essa raça tinha era que morrer”, lembra. As dificuldades aumentavam a vontade de criar o grupo e ajudar àqueles que enfrentariam a mesma situação. Hoje, cinco anos em regime aberto e o mesmo período de criação da cooperativa, são confeccionadas mensalmente cerca de 250 bolas e reaproveitadas mil toneladas de madeira na forma de sofás, piquetes e na revenda às empresas de construção civil.
A mudança pelo trabalho
No início, o projeto era direcionado a jovens de 12 a 17 anos em situação de risco. Até hoje Fernando comemora a primeira produção, proveniente de uma enorme quantidade de restos de bolas jogados no lixão. Com o reaproveitamento, foi possível confeccionar 500 unidades e consolidar o trabalho da cooperativa. Mas logo que a associação conseguiu ganhar visibilidade, veio o problema: uma reportagem denunciando o trabalho infantil.
O Ministério do Trabalho foi acionado e proibiu o emprego dos mais jovens. Desde então, só podem trabalhar pessoas a partir de 16 anos. “É uma pena. Muitos desses que foram retirados morreram ou estão no Caje. Aqui tinha um menino de 12 anos que já tinha praticado um homicídio. Era uma forma de ajudá-los”, lamenta.

E a ajuda realmente faz diferença. Desde que entrou para a associação, José Divino deixou de usar drogas, tem um lugar para morar e envia mensalmente dinheiro para a família, que está na Bahia. Antes, vivia escondido em um chiqueiro na quadra 12 da Estrutural e se alimentava do crack e do resto de comida que encontrava. “Não é fácil não desistir. O que não falta é alguém que queira te levar para as drogas”, afirma. Hoje, aquele que no passado vivia de furtos na região, junta o salário para montar o próprio empreendimento: uma loja de sofá para crianças.
O mesmo vale para Mauro Campos, este que ficou paraplégico ao ser baleado por policiais que o flagraram fugindo da cadeia. O esforço que faz para chegar à associação é recompensado apenas pelo fato de estar reinserido na sociedade. “Deixo o dinheiro com minha mãe ou minha mulher, não guardo nada”, comenta. Ainda que ande sem nada nos bolsos, carregará para sempre os nove projéteis de bala alojados em seu corpo – peso inestimável para quem leva eternamente o fardo de ser ex-presidiário.
Invista na ideia
O Sonho de Liberdade oferece diariamente almoço e lanche para os 60 integrantes e também moradia àqueles que não têm onde morar. Todo o recurso é arrecadado da própria cooperativa. “Muitos governantes vêm nos dizer que o trabalho é lindo e maravilhoso, mas viram as costas e nunca mais voltam”, diz Fernando.
Quem tiver interesse em colaborar com doações, entre em contato com o Fernando pelo telefone 8408-6448.
Clique aqui para ver mais fotos da Associação Sonho de Liberdade

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