Num país dividido, veríamos uma cultura se cindindo em grupos antagônicos, veríamos artistas, cineastas e escritores assumindo polos opostos...
Num país dividido, veríamos uma cultura se cindindo em grupos antagônicos, veríamos artistas, cineastas e escritores assumindo polos opostos e divergindo uns dos outros, discutindo ao infinito suas visões conflitantes.
Mas este não é um país dividido, é um país fraturado.
E, num país fraturado, a cultura se posta quase inteira de um lado, a cultura se une decidida a defender o que resta de democracia, de humanismo, de sensibilidade.
Do outro lado quase não sobram artistas, e o que se cria é uma ruidosa vociferação contra a cultura, contra a arte, como se ela própria fosse o mal a ser eliminado.
A cada dia a fratura se agrava, num ciclo interminável: mais a arte é atacada, mais os artistas se posicionam, mais passam a ser execrados por tantos daqueles que alguma vez os admiraram.
E porque esses tantos já não os entendem, porque se afastaram de qualquer apreço pela arte, pelo cinema, pela literatura, passam a julgá-las atividades tolas e fúteis, ocupações parasitárias.
Aos seus olhos tão turvos, os artistas se convertem em mercenários, em sujeitos gananciosos que nada defendem por princípio, que não observam o mundo e nem o querem transformar, que só desejam garantir seu quinhão orçamentário num governo futuro. Contra a resistência da arte, o que esses propõem é uma desistê.
Por mais violento e lamentável que seja esse argumento, talvez convenha observá-lo em algum detalhe.
Há algo de contraditório nessa sanha de abater o que seria inútil e frívolo, o que não passaria de desperdício de energia sem função social, expressão de uma improdutividade. Por outras atividades tão improdutivas quanto a arte, ainda segundo essa lógica estereotipada, esses sujeitos não costumam mostrar a mesma antipatia: empolgam-se com os esportes, exaltam a religião, incentivam o entretenimento em suas formas mais banais. A arte não lhes provoca desprezo, como eles querem alegar.
O que ela provoca é medo e ansiedade: medo diante do desconhecido, ansiedade diante daquilo que pode.
Quem acusa a inutilidade da arte, nota-se, o que teme realmente é sua ampla e incontível utilidade, sua eficácia em transformar mentes e imaginar um mundo novo, uma nova sociedade. Foi num contexto de questionamento de preconceitos e dogmas, foi no momento em que a arte começou a se fazer mais diversa e a erguer sua voz contra o racismo, o machismo, a homofobia, contra toda uma gama de desigualdades históricas, foi nesse exato momento que o ódio à cultura recrudesceu e se fez selvagem.
O ódio à cultura nada tem de centrado ou sensato, nada tem de afeito à produtividade: é apenas uma voz desesperada querendo calar outras vozes, querendo retornar a um silêncio feito de privilégio, discriminação e exploração desumana.
De inúmeras maneiras a cultura tem sido atacada nesses últimos anos, e seria pouco razoável dizer que ela não sofre, que não padece as consequências severas de tanto ódio. Como outros elementos centrais da nossa sociedade, como a educação, a ciência, como a própria terra que habitamos e que não cessou de queimar, a cultura tem definhado sob os desmandos programáticos de um governo que fez da destruição o seu projeto — isso já se disse demais.
Mas se enganam, e se enganarão sempre, os que pensam que podem sufocá-la, que podem acabar com algo tão essencial à existência.
Algo que se confunde com a própria concepção do humano, e que tão bem se inscreve na identidade brasileira.
Não há triunfo possível no ódio à cultura, a não ser a crescente ignorância dos que se deixam tomar por ele, sua alienação cada vez maior em relação a um mundo que não deixará de se transformar.
O ódio à cultura é um muro de contenção já crivado de infinitas rachaduras, prestes a colapsar.
Quando isso acontecer, cedo ou tarde, não teremos mais a fratura exposta a nos atravessar, e o país se deixará inundar por fim pela força e pela riqueza de sua cultura.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL
Fonte: Uol.com
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